Gislaine Rocha – Tarauacá -Acre
Lembro-me muito bem de tempos de outrora. Na cidadezinha onde eu morava, as mulheres começavam cedo a labuta. Viviam para os seus maridos e para os afazeres do lar, sem ao menos ter tempo para sonhar. Acordavam ainda de madrugada, para passar o cafezinho, tão almejado pelos mandões da casa. Depois, iam para o tanque lavar as roupas da família, cuidar dos filhos e educá-los, para que pudessem ter um futuro melhor. Mesmo com tanto esforço, nunca agradavam seus esposos, que sempre achavam que era pouco, mesmo que elas tudo fizessem para agradá-los.
Comigo não era diferente. Eu trabalhava como escrava para cuidar da minha família e do lar. Tive 12 filhos, seis homens e seis mulheres, que sempre eduquei com muito amor, apesar de tanto sofrimento. Para o meu marido, eu era apenas mais uma peça da casa, uma mulher que só tinha obrigações e nunca podia fazer nada que não tivesse relação com o trabalho diário. Não ia à missa, nem ao mercado, muito menos apreciar as embarcações na beira do rio, um dos poucos lazeres da época, já que não tínhamos estradas e nem pista de pouso para aviões. Na verdade, nunca tinha visto um ao vivo, só muito tempo depois, pela televisão. Assim, todos os visitantes chegavam à nossa cidadezinha em lindos barcos, que vinham do Amazonas. Mas eu, coitada, jamais poderia desfrutar desses momentos felizes.
Meu marido trabalhava no mercado, matava bois e porcos, cortava a carne e vendia. Naquele tempo as pessoas tinham que ir ao mercado municipal antes da aurora do dia, pois tinham que fazer uma grande fila para poder comprar carne. A vida também não era fácil para ele, que tinha que pôr comida na mesa para catorze pessoas, sem contar os parentes que sempre apareciam na hora das refeições. Ele passava o dia fora trabalhando, por isso, creio eu, chegava sempre mal humorado, gritando comigo e com os filhos, sem nada de errado termos feito. De noite, quando as crianças dormiam, ele vinha à minha procura, sedento e violento, querendo arrancar de mim carícias que eu lhe dava sem contestar, mesmo contra a minha vontade, porque ai de mim se não o agradasse nessas horas. Se isso acontecesse, eu era logo acusada de traição e de mulher libertina. Então, com medo de ser espancada, eu sempre cedia aos seus desejos mais ferozes. Depois, saciado, ele dormia. E eu ficava ali, com a sensação de que aquela era a vida que Deus tinha me dado e, por isso eu deveria aceitar tudo, sem reclamar.
Essa era a minha vida: lavava, passava, cozinhava e cuidava dos filhos. Todo dia era a mesma coisa. Não tinha domingo e nem feriado. Era todo dia a mesma coisa.
Muitos anos se passaram, hoje tenho 65 anos. Fiquei viúva aos 35. Sofri muito, mas consegui criar meus filhos para que se tornassem pessoas de bem, mesmo vivendo na pobreza. Mas, ser pobre não é defeito. O que importa é o caráter.
Meus filhos cresceram, estudaram. Hoje são todos bem empregados. Minhas filhas não sofrem como eu sofri, são independentes e livres. Conquistaram seus espaços. São felizes. Eu acho que também fui feliz, mesmo sofrendo tudo que sofri.
Afinal o tempo passou e as coisas mudaram. Agora as mulheres também têm direitos. O progresso chegou e as pessoas se comportam de forma diferente daquela época. Tudo evoluiu. Hoje posso dizer que sou ainda mais feliz, pois vivo no meu cantinho, não passo mais necessidades e vejo o quanto meus filhos são felizes, porque o que vale para uma mãe é isso. Quanto ao meu marido já está de osso branco há muito tempo, pagando os pecados que cometeu aqui na Terra. E eu, ainda estou aqui, até quando Deus permitir.
MEMÓRIAS DE UMA MULHER REBELDE
Produzido por Francicleia - Tarauacá -Ac
Na cidade pacata de Tarauacá, ainda com poucas ruas e um ambiente bem rupestre, nasci. Uma menina frágil, dócil e serena. Mais uma mulher que seria preparada para a vida sofrida e conformada que deveriam ter as mulheres, consideradas apenas como propriedade de seus maridos. Lembro quando minha mãe contava que a vida das mulheres de sua época era bem diferente das de hoje. Eram criadas e ensinadas para casar, procriar e obedecer a seus esposos. As moças que não conseguiam casar e eram mães solteiras sofriam preconceitos perante toda a sociedade. Minha mãe costumava contar, em muitos de seus conselhos, que elas moravam em um lugar afastado da cidade, conhecido como Rua da Aninga, hoje João Pessoa. Era um igapó, com enormes trapiches e casas de madeira. Não freqüentavam festas e locais da cidade, enquanto as pessoas “de bem” ainda andavam pela rua. Só saiam à noite. E para sustentar os filhos, obrigavam-se a receber homens à noite. Que por sinal, era um lugar bem freqüentado por eles.
As moças não podiam fazer amizade com mães solteiras, pois sua reputação ficaria prejudicada. E os boatos e falatórios eram intensos.
Passados alguns anos, cresci, em meio ao preconceito e minha visão avançada. Tornei-me uma jovem rebelde, que não via mal algum e nem diferença entre as mulheres, chegando até a fazer amizade com elas. Isso me rendeu muitos dissabores e tristezas, pois minha mãe não aceitava que eu fosse assim. Ela tentava me criar como foi criada, mas nunca aceitei, pois gostava mais de atividades, que eram propriamente dos homens e eu não suportava trabalhos domésticos.
A cidade começou a crescer, e a situação da mulher foi melhorando. Ganhou o direito de votar, de trabalhar, de receber o mesmo ordenado e de exercer funções importantes tanto quanto os homens. Aquelas diferenças de outrora aos poucos foram se desfazendo. Com as inovações tecnológicas, o preconceito foi diminuindo, dando lugar a uma mentalidade revolucionária e dinâmica. Isso se deu a inúmeras conquistas, lutas e muito sofrimento.
Hoje, a mulher tem um papel importante e promissor no mundo. Ela é o eixo principal da família, conseguindo também conciliar família e trabalho, bem como realizar atividades importantes no contexto social vigente.
Em minhas reminiscências, recordo esse percurso e vejo a mulher que sou hoje: independente, trabalhadora, realizada como mãe e como profissional, com liberdade e arbítrio para fazer o que desejar. É verdade que nem todas se encontram nessa realidade, mas a luta continua.
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